[Migraciones #8] - O ato de fiar é uma metáfora para o destino
Migraciones é uma newsletter quinzenal de crônicas, ensaios e reflexões sobre viagens, nomadismo e movimento, enviada quase sempre às quinta-feiras.
No meio da Praça das Armas de Cusco, o líder indígena Tupac Amaru teve seus braços e pernas amarrados com quatro cordas, e as cordas amarradas aos dorsos de quatro cavalos. Seu crime: liderar uma organização inspirada nas ideias iluministas contra o domínio espanhol na América Latina.
Os animais começaram a puxar, cada um em uma direção, os membros do homem que afirmava ser herdeiro dos governantes Incas. Foi morto pouco depois, ao ter a cabeça decapitada por seu algoz que, ao se apiedar de seu sofrimento, resolveu dar o golpe de misericórdia.
A cena, que até hoje está imortalizada na história e memória coletiva do povo cusquenho, está registrada também em um pedaço de tecido exposto no Museu Histórico Regional, localizado no centro da cidade. Não fosse o pequeno cartão explicativo colocado ao lado, no entanto, talvez você nunca percebesse isso.
As cores e ilustrações dos tecidos andinos são souvenires bastante populares nos principais destinos da região. Estão em mercados de artesanato, em lojas de grife, em paradas no meio da estrada. Formam o cenário das fotos dignas de cartões-postais e são exibidas na sala de estar como troféus de viagem. Mas são muito mais que isso. Através das mãos ágeis das mulheres que descendem de povos ancestrais, eles preservam em seu entrelaçado a cosmovisão, a história e a cultura dos povos originários das montanhas sul-americanas.
A pesquisadora Claudia Mora afirma que a tecelagem está para as culturas andinas assim como a pintura está para a cultura ocidental: “Se trata de uma arte maior feita através do perfeito domínio sobre a matéria e pela profusão de desenho e cor”.
Mais que uma importante atividade econômica regional, a tecelagem andina é parte da vida social e da identidade cultural das comunidades tradicionais do altiplano peruano, que há séculos usam os tecidos também para indicar a qual povo – entre Quechua ou Aymara – pertencem, estado civil, status social, entre outras coisas.
Embora não tivesse um sistema de escrita nos moldes em que conhecemos hoje, o povo Quechua, que habitava as terras de domínio do Império Inca, desenvolveu outras formas de registro. O Quipo, um conjunto de cordões, era utilizado para informar dados de colheitas e transmitir mensagens com base no número de nós, na posição deles e nas cores dos cordões.
Já as lendas, passagens históricas, relatos do dia a dia e crenças se tornavam imagens impressas nos tecidos, utilizando-se de técnicas únicas de tecelagem que passaram de geração em geração e sobrevivem até hoje. Com nomes como Mayu Qenqo (rio sinuoso) ou Pumac Makin (pegadas de puma), cada estampa nos tecidos andinos é uma expressão cultural muito mais complexa que o simples agrado estético.
TEJIDO ANDINO on Vimeo
Aos 17 anos, Adriana conta que tece “desde muy niña”. Aprendeu observando a mãe e a avó. Costuma dedicar algumas horas do dia à atividade e vende seu trabalho na beira da estrada que leva ao sítio arqueológico de Puca Pucara, nos arredores de Cusco. O dinheiro que ganha ali ajuda no sustento familiar. Seus dedos ágeis que entrelaçam os fios no tear de cintura, que ela carrega sempre para “pasar el tiempo”, seguem os mesmos movimentos de seus antepassados.
De acordo com a tradição, foi Mama Ocllo, esposa do primeiro imperador Inca, que ensinou às mulheres o poder de unir e desenhar com os fios. Para eles, o ato de fiar é uma metáfora para o destino, o ritmo da vida e da morte e a relação sistêmica entre tudo o que existe. O entrelaçar das partes que forma o inteiro.
A antropologia diz que a invenção da trama tecida é a organização mais antiga e a mais universal, pois se apresenta em todas as civilizações e grupos sociais do mundo, inclusive nas culturas e etnias mais primitivas que já existiram ou ainda existem. - A magia dos tecidos, Luis Pellegrini
Uma arte em risco
Apesar de cada vez mais rara, a técnica de tecelagem artesanal ainda faz parte das diversas comunidades indígenas que habitam a zona rural do Vale Sagrado dos Incas, nos arredores de Cusco. Por ali, o dia começa cedo. Enquanto os homens cuidam das plantações e do comércio dos produtos agrícolas, as mulheres se dedicam às tarefas domésticas e criação de animais, em especial das alpacas e llamas, das quais extraem a lã que será matéria-prima dos tecidos.
A crescente demanda turística por esse material, no entanto, acaba por colocar em risco as técnicas milenares de fabricação dos tecidos. Para acelerar a produção e abastecer os mercados e lojas de artesanato, muitas vezes as produtoras se vêem obrigadas a recorrer a processos e materiais distintos: as tintas, que eram feitas a partir de sementes e plantas, começam a ser substituídas por produtos industrializados.
Os teares manuais perdem espaço para os automáticos e os tecidos encontrados à venda apresentam estampas cada vez mais simples e padronizadas, o que ameaça a riqueza e importância desse tipo de manifestação cultural: “Cada estilo nos ajuda a reconstruir uma cultura que resiste em desaparecer e dá um testemunho de mundo diferente do ocidental”, afirma Claudia Mora.
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