[Migraciones #5] - Nomadland é aqui
Migraciones é uma newsletter de crônicas, ensaios e reflexões sobre viagens, nomadismo e movimento. No mundo ideal é enviada a cada 15 dias, mas todos sabemos que o ideal só existe no plano das ideias e aqui na Terra o que impera é o caos.
Nomadland é aqui
Em algum momento dessa vida que parece outra vida completamente diferente, eu fui estagiária do Centro de Alfabetização e Letramento da UFMG. Era um trabalho legal, no qual eu tinha que escrever reportagens sobre educação em um jornal voltado para professores do Ensino Básico. Entre uma entrevista e outra, eu encontrava muito tempo livre para gastar em uma sala abarrotada de computadores amarelados.
Aquelas tardes solitárias passadas na Faculdade de Educação me trouxeram um hobby inusitado: perdi as contas de quantas horas passei olhando anúncios de motorhomes no Mercado Livre. Eu, que mal-mal havia chegado até o Espírito Santo, sonhava em pegar minha farta bolsa-estágio de trezentos reais e sair por aí, percorrendo estradas sem destino, dormindo cada dia em um lugar.
Era divertido imaginar a aventura num momento em que tudo na minha vida parecia tão corriqueiro e sem graça, e a fantasia se tornou quase uma obsessão. Eu não sabia dirigir e mal tinha o dinheiro do ônibus na carteira, muito menos os quatrocentos mil lulas pedido pelos donos, mas me imaginava vivendo aquela liberdade inocente e romantizada, sem obrigações ou compromisso, sem pressões, boletos e horários de trabalho.
(Acho que, naquela época, esse tipo de veículo não era fabricado no Brasil e por isso todos os anúncios eram de trailers importados. Não sei se isso mudou, mas é por isso que eram tão caros).
Anos mais tarde, já com um emprego de adulto, me deparei mais uma vez com o sonho de uma vida nômade. Mas o gatilho que me atirou nela foi nada romântico: do dia para a noite, descobri o significado da precariedade.
A mega-empresa-editorial para a qual eu prestei serviço como PJ por alguns meses (mas com responsabilidades de CLT, diga-se de passagem), resolveu fechar minha redação e colocar todo mundo na rua. Sem direito a fundo de garantia ou um segurinho-desemprego que fosse, decidi: se o mercado não me proporcionaria direitos trabalhistas, eu iria ao menos aproveitar a liberdade da ausência de vínculos.
Pleiteei alguns trabalhos freelancer e, uma vez estabilizada, fui trabalhar das mesas de cafés e bares de hostels espalhados pelas principais capitais na Europa. De lá para cá, vocês sabem: o 360meridianos acabou crescendo e se tornando meu trabalho autônomo e eu tive a oportunidade de tirar inúmeras fotos de blogueira em inúmeros destinos por aí.
Reconheço todos os privilégios que me permitiram esse estilo de vida e sou verdadeiramente contente por ter tido a oportunidade de adotá-lo (eu sonhava com ele lá atrás, se lembram?). Mas ao assistir ao filme Nomadland, vencedor do Oscar de 2021, terminei com uma agridoce sensação de reconhecimento.
O filme retrata a realidade dos mais de um milhão de pessoas que, após o colapso econômico de 2008, adotaram a vida nômade nos Estados Unidos. Apenas dois dos personagens são interpretados por atores: a protagonista Fern (Frances McDormand) e sua amiga Dolly (Melissa Smith). Todas as outras histórias que aparecem no filme são de pessoas reais, que falam sobre a experiência de viver sem endereço fixo a partir de suas vivências.
É verdade que os nômades retratados ali têm um perfil bem diferente do meu: são pessoas mais velhas que viajam em busca de empregos sazonais em todo o país. Trabalham em supermercados e em depósitos da Amazon, dormem em acampamentos e acabaram construindo uma comunidade que se ajuda mutuamente.
A maior parte deles foi aparar em um trailer não por opção, mas por não conseguir arcar com as despesas de uma casa com o dinheiro da aposentadoria. Outros encontraram na estrada e na comunidade uma alternativa e um novo motivo para viver: “Sempre foi meu objetivo fazer com que as pessoas soubessem que elas têm opções”, conta Bob Wells, um dos personagens do filme e presidente da Homes On Wheels Alliance (Aliança das Casas Sobre Rodas). Bob se tornou nômade após o suicídio do filho e acredita que a estrada tenha lhe proporcionado um novo propósito para sua vida.
Mas com todas essas óbvias diferenças, não seriamos todos, nômades aposentados vivendo em trailers e millenials hipsters adeptos do trabalho remoto vítimas do mesmo capitalismo tardio? Não estamos, cada um do seu jeito, tentando encontrar nossos escapes diante do trabalho precarizado e da crescente uberização dos serviços?
Na internet, o filme recebeu inúmeras críticas que o acusavam de glamourizar a precariedade e de adotar um viés pouco crítico com relação ao capitalismo americano. Mas como bem disse essa crítica, é na contradição entre os absurdos da sociedade e o maravilhamento com o mundo que mora a beleza do filme e o fascínio dessa história:
É a partir dela [a montagem do filme] que Nomadland pode ir e voltar o tempo inteiro em registros distintos: flutuar entre o viver livre e o viver mal, entre o trabalho braçal e o ócio criativo, entre o tédio da rotina e o maravilhamento com a natureza.
Do lado de cá, dessa geração a quem prometeram tudo e deram tão pouco, a vida nômade também se manifesta com a mesma dualidade: viajar o mundo e adoecer por burnout no meio do caminho, tirar uma foto na praia e se sentir culpado por não produzir o tempo todo. Conhecer gente do mundo inteiro e trabalhar em troca de hospedagem em hostels. Tudo isso sem saber se, um dia, poderemos nos aposentar.
É irônico perceber que, durante a pandemia, me vi novamente naquela situação que me jogou na estrada lá atrás: sem salário, sem direitos, sem seguridade social. Assim como daquela vez, corri atrás dos frilas e abracei a liberdade. Fui morar na praia.
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Enquanto escrevia esse texto, me lembrei de uma amiga também pediu as contas em uma agência e foi ser freelancer em Itacaré. Quando questionei seus motivos, ela disse: cansei de ganhar mal e ficar presa em horário comercial. Se é para ganhar mal, pelo menos vou ser livre.
Livro Encontros para por na estante
Publicar um livro com as histórias de viagem do 360meridianos é um sonho. Talvez o mais antigo de todos.
E embora a gente ame a praticidade dos livros digitais, também somos fãs dos de papel.
Por isso, estamos preparando a versão impressa do livro “Encontros”, uma coletânea de crônicas publicadas nesses 10 anos de blog, que celebrou uma década de vida no dia 12 de outubro.
O livro Encontros já está na gráfica e vai custar R$ 39,90 (mais frete).
São 21 textos que relembram alguns dos nossos lugares, pessoas e histórias preferidas. Tem Mumbai e Praga; Belo Horizonte e Nepal; México e País Basco, só para citar alguns dos cenários. São relatos de viagens no que elas têm de mais especial e marcante, que são os muitos encontros com outras pessoas.
Se você quer fazer parte desse sonho com a gente e tem um exemplar para por na estante, basta preencher o formulário nesse link, que entraremos em contato para combinar o pagamento e o envio. Quem se manifestar até o dia 09/12 ganha 10% de desconto.
Links e outras coisinhas mais
O podcast da 451 sobre Caio Fernando Abreu.
A Editora Âyiné começou a publicar o The Passenger no Brasil esse ano. São livros-revista com reportagens em profundidade e, algumas vezes, em linguagem literária sobre destinos diversos, indo além dos estereótipos dos mesmo. Eu já tinha folheado algumas edições na Espanha e, quando vi que agora era publicado aqui, resolvi comprar. O primeiro volume é sobre o Japão e tem uma reportagem incrível sobre relatos de fantasmas pós-Tsunami de 2011.
Tenho maratonado a série Superstore na Netflix. Pra quem gosta de um sitcom engraçadinho pra variar.