[Migraciones #4] Ao entrar em um templo pela primeira vez, faça um pedido
Migraciones é uma newsletter quinzenal de crônicas, ensaios e reflexões sobre viagens, nomadismo e movimento. Nesta edição, reproduzo uma crônica originalmente publicada no 360meridianos e que abre o livro em comemoração aos 10 anos do blog. Se você gostar, veja como pode adquirir o livro completo ali embaixo ;)
Eu tomava café da manhã no restaurante do terraço de um hotel em McLeod Ganj, na Índia. Era meados de novembro e o dia estava lindo com o sol de inverno e o céu azul que vem com ele. No fundo, os Himalaias se erguiam para onde quer que a gente olhasse. Entre uma mordida na minha panqueca e um gole do meu banana lassi, eu disse: “Caramba, nunca pensei que pisaria num lugar desses".
Foi ali que percebi que tinha realizado um desejo feito muitos anos antes. Não que eu tivesse sonhado em visitar McLeod Ganj algum dia na vida. Para falar a verdade, sequer tinha ouvido falar daquela pequena vila, sede do governo tibetano no exílio, até chegar à Índia. Mas eu sonhava, sim, com uma ideia distante de lugares que eu não conhecia. Um sonho que surgiu quando eu ainda era criança e passava horas com a cabeça enfiada em enciclopédias lendo sobre países dos quais eu nunca tinha ouvido falar para tentar decifrar o último mistério de Carmen San Diego.
Minha família viajava pouco.
A cada férias escolares, percorríamos um longo caminho para visitar meus avós no norte de Minas. Em alguns verões, passamos temporadas na casa de amigos em Petrópolis e uma ou duas vezes fomos acampar na Serra do Cipó. De todas essas viagens eu guardo lembranças nítidas. Como da vez em que visitamos a Serra da Canastra e minha mãe segurou meu braço enquanto subíamos as escadarias de uma igreja: “Sempre que entrar em uma igreja pela primeira vez, faça um pedido”.
Foi ela também que me ensinou a fazer um pedido para a primeira estrela que eu visse no céu, hábito que carreguei comigo por mais tempo do que seria socialmente aceitável admitir. Eu tinha uma lista de pedidos que fazia sempre. Eu queria um cachorro mais que tudo no mundo. Queria que nos mudássemos do apartamento onde morávamos para uma casa para que a gente pudesse ter um cachorro. Queria viajar. E ao cruzar o umbral daquela igreja, foi isso que eu pedi. “Eu desejo fazer isso mais vezes”.
Quando criança, eu tinha sede de descoberta. Pedi minha primeira boneca aos dez anos, pouco tempo antes de deixá-las de lado. Não é que eu não gostasse delas, e como qualquer menina eu acabei ganhando muitas. Mas quando eu podia escolher, queria outro tipo de diversão. O Meu Primeiro Gradiente, o Pense Bem, o Super Nintendo, uma coleção de livros, um microscópio. Uma vez, eu peguei um caderno e resolvi que ia escrever um livro sobre as curiosidades do mundo. Ele era ilustrado com as figurinhas que vinham no chocolate Surpresa e recheado de informações que eu tirava da Barsa. A primeira página era sobre a Via Láctea.
Quando eu descia para andar de bicicleta, fazia de conta que estava perdida em uma floresta, como no filme Conta Comigo. Na trilha que fiz com meus pais até uma cachoeira da Serra do Curral, eu era a chefe de uma equipe de arqueólogos em busca de tesouros perdidos. E quando passava horas com o rosto colado na tela do meu Game Boy, o que me encantava era a aventura de explorar um mundo desconhecido, mais que capturar os 150 Pokémons.
Eu queria visitar lugares remotos, explorar vilas perdidas no tempo, descobrir relíquias. Eu sonhava em visitar o estranho país de bandeira em formato de árvore de natal, em caminhar pela orla repleta de casinhas coloridas como aquela foto de Reykjavík e conhecer as tribos canibais de Papuá-Nova Guiné. Eu percorria o mapa com o dedo e a imensidão do mundo parecia infinita na cabeça de uma menina que ainda não tinha dado seus primeira voos. “Será que se a gente cavar um buraco bem fundo a gente sai na China?”.
Quase vinte anos mais tarde, quando eu me vi cercada de montanha, neve e monges tibetanos, eu senti uma felicidade estranha, que misturava descrença e deslumbramento. Um desejo havia se tornado real e, naquele momento, McLeod era isso e nada mais. Era a materialização dos lugares fictícios que eu tinha criado na minha mente. Era a minha aventura, a minha jornada do herói. Foi naquele café da manhã que eu percebi que eu estava fazendo tudo o que eu sempre quis fazer e isso era consequência de diversas decisões que eu havia tomado nos últimos meses, muito trabalho, alguma sorte e da minha determinação. Ainda assim, por via das dúvidas, fica o conselho: ao entrar em um templo pela primeira vez, faça um pedido.
10 anos: O tempo é uma ventania
Sei que é clichê, mas todos nós já nos deparamos com uma sensação dessas de “parece que foi ontem” e, ao mesmo tempo, “puxa, tanta coisa aconteceu”. Como se o tempo tivesse passado rápido demais, mas não passasse em branco: uma ventania que carrega em si tantas coisas que a gente só consegue ficar ali no meio, meio desequilibrados, tentando agarrar o que der com a mão sem entender direito coisa alguma.
Pois parece que foi ontem e, nossa!, aconteceu tanta coisa desde o dia em que eu entrei em um avião com destino a Madri, recém adulta, recém-formada, inocente, curiosa, cheia daquela arrogância juvenil, com sede de experiências novas, morrendo de vontade de desbravar o mundo e de viver a vida assim, no talo.
É claro que eu não podia imaginar que o blog feito às pressas com um template gratuito do blogspot se tornaria um projeto de vida e me abriria tantas portas nos anos seguintes. Mas aqui estamos, 10 anos e uma pandemia depois, ainda vivos e cheios de planos.
Quando eu entrei na faculdade de jornalismo, eu jurava que queria ser correspondente de guerra. Só mais tarde, percebi que esse desejo era, na verdade, formado por outros três, mais autênticos: viajar, ver e contar. Escolher o jornalismo de viagens não foi, nem de longe, uma escolha tão consciente quanto minha trajetória parece mostrar. Foi mais uma daquelas coisas que, quando a gente se dá conta, já aconteceu. Mas hoje eu percebo que a vontade de falar do mundo, de sua diversidade, nuances e complexidades, sempre esteve aí. O 360meridianos foi o espaço que, junto com o Rafa e a Luíza, construi para isso. Espero que vocês continuem viajando com a gente.
Encontros - Crônicas de Viagem
Para comemorar, lançamos um livro com algumas das crônicas de viagem que mais gostamos de escrever para o blog, reeditadas para se adaptarem ao formato e-book e à linguagem literária.
O livro foi publicado pelo Clube Grandes Viajantes, nosso clube de literatura de viagens. Você pode recebê-lo clicando aqui.
Em novembro, colocaremos o livro à venda de forma avulsa, para quem preferir.
Leituras, links e outras recomendações <3
Acabo de terminar “Tudo sobre o Amor - Novas Perspectivas”, da bell hooks, um dos maiores nomes do feminismo e da luta antirracista atuais. Ainda estou tentando digerir o capítulo sobre o amor romântico, embora o livro aborde o tema de uma perspectiva muito mais ampla que essa, claro, em geral é essa construção que dá na gente um soco na cara.
A série que ganhou meu coração recentemente é Ted Lasso. Personagens, diálogos e piadas perfeitas, como eu sentia falta de uma comédia para chamar de minha. Tá na Apple TV.
Esse texto sobre como a arte africana (e de outros povos) é sempre considerada inferior quando comparada à europeia, mesmo quando feita com técnicas e complexidade semelhantes.