[Migraciones #38] Não morremos até que nos esqueçam
A festa do dia dos mortos no México entre os povos tradicionais de Veracruz
De trás dos portões do cemitério de Papantla de Olarte, no estado mexicano de Veracruz, uma figura vestida com uma longa túnica marrom e um capuz que ocultava parcialmente seu rosto fantasmagórico caminha de um lado para o outro antes de parar em frente à fechadura e escancarar a grade que separava o mundo dos mortos e o dos vivos. Ele mandou um aceno para a multidão que o observava em silêncio, do lado de fora do cemitério, e desapareceu entre as tumbas.
Instantes depois, uma procissão de personagens diversos com rostos de caveiras atravessa o portão e segue impassível ladeira abaixo, em direção à principal praça da cidade. Alguns deles vestem roupas que remetem aos reis e rainhas pré-hispânicos. Outros usam as tradicionais vestes totonacas — nome dos indígenas que habitam aquela região — e, no caminho, reproduzem os passos das danças típicas de sua cultura. A passagem das caveiras do cemitério para o centro da cidade simboliza o momento em que os portões do paraíso se abrem, no dia 31 de outubro. Dali até o dia 2 de novembro, as almas que já não habitam este mundo são recebidas com alegria por seus parentes e amigos vivos.
A Origem do Dia do Mortos Mexicano
Ao contrário do que muita gente acredita, o Dia dos Mortos tal como se comemora hoje não é uma celebração pré-hispânica. É resultado do sincretismo entre as religiões originárias e o cristianismo introduzido no país com a chegada dos conquistadores espanhóis.
A forma de encarar a festa católica do Dia de Todos os Santos, no entanto, herdou muito da cosmovisão pré-colonial. A morte sempre ocupou um lugar importante no sistema de crenças dos povos mesoamericanos. Grande parte deles, em especial os que habitavam as regiões centrais e do sul do México, tinham em seus calendários meses inteiros dedicados a honrar seus antepassados e familiares mortos.
De acordo com Eusébio, guia de turismo da Zona Arqueológica do Tajín, antiga capital do mundo totonaco, para esses povos, morrer era transcender. Por isso ser sacrificado era um privilégio reservado a poucos. Hoje, a ideia de que o falecimento é o fim de um ciclo e o início do outro ainda se preserva entre os descendentes desses povos.
"Aqui a morte é algo natural, é parte da vida. Por isso celebramos com uma festa", conta Maria Cristina Guerrero, uma senhora de origem totonaca que viveu em Papantla toda a sua vida e se animava com a proximidade do Dia dos Mortos.
Na língua totonaca, a festa recebe o nome de Ninín. A palavra, que traduzida literalmente ao português quer dizer "não mortos", representa bem a visão do que há depois das nossas vidas terrenas. Ninguém morre de verdade no México enquanto exista quem se importe com eles.
Como se festeja o Dia dos Mortos entre os povos tradicionais
Além da cosmovisão, alguns dos costumes tradicionais da festa também foram herdados dos tempos pré-coloniais, como a preparação do altar de muertos, as oferendas e a simbologia por trás delas. A mesa, decorada com velas, papel de seda picado em formas diversas e flores coloridas, é preparada nos últimos dias de outubro e representa o portal que se abre entre os dois mundos. O tipo de oferta que se coloca nela varia de acordo com a região.
Em Totonacapan, nação Totonaca que abrange o estado de Veracruz e a serra de Puebla, por exemplo, é comum que se oferte tamales - massa de milho recheada de carnes, queijo ou frutas -, abóbora em conserva, bolinhos de anis e frutas diversas. Já entre os Raramuri, que habitam o norte do país, só se oferta aquilo que a natureza produz.
Outros costumes e crenças também variam ao longo do território mexicano. Há quem diga que os mortos se manifestam entre nós em forma de insetos, como abelhas e borboletas. Outros acreditam que eles vêm em forma de espíritos, invisíveis aos olhos humanos, mas sentidos com o coração, e que o ar se torna mais rarefeito esse dia, como se o nosso mundo se tornasse também um pouco menos material.
Algumas famílias levam comida para o cemitério e fazem uma grande festa junto às tumbas de seus parentes e amigos, com direito a música, tequila ou mezcal. Outras deixam a porta de casa aberta, convidando as almas de seus entes queridos. É comum também que se distribua "pan de muerto" - um pão doce coberto de açúcar - nas ruas.
Em Papantla, os três dias que correspondem ao Tiempo de Muertos são comemorados com muita música, apresentações de dança e peças de teatro. Já na Cidade do México, esculturas de caveiras mexicanas são colocadas ao longo do Paseo de la Reforma, avenida pela qual também passa um grande desfile de Catrinas.
Mais que um dia de culto à morte, a festa mexicana é uma forma de honrar o tempo que pessoas queridas passaram entre nós e de lembrarmos delas com alegria, porque para morrer é preciso existir. Como disse o escritor mexicano e prêmio Nobel de literatura Octavio Paz, "nosso culto à morte é um culto à vida".
Disclaimer: esse texto foi originalmente publicado no 360meridianos em 2018. Como precisou ser apagado do blog, decidi republicá-lo aqui.
Vídeos Novos (e muitas coisas novas) no Canal
Pra edição de hoje ficar temática, nas duas últimas semanas publiquei dois vídeos sobre povos tradicionais, mas não do México, da Colômbia, onde passei três meses esse ano. Eles estão ali embaixo.
Além disso, trabalhei muitíssimo nos últimos dias para trocar toda a identidade visual de todas as minhas plataformas pra nova marca que eu lancei essa semana. Eu sofria muito pra fazer as capas do canal e galerias para o Instagram e LinkedIn porque, como boa jornalista, só tenho uma visão muuuito básica do que é um bom design rs.
Talvez vocês tenha notado a mudança no banner, nas cores e no fav icon no navegador de vocês. É que nos últimos meses, trabalhei com a NandaLab para criar uma identidade que fosse a minha cara não penas no canal, mas para criar uma coesão entre todas as redes e estou simplesmente apaixonada pelo resultado. Clique aqui pra conferir como ficou e me digam se gostaram também.
Outras coisas…
Estou quase acabando o hype do momento “A gente mira no amor e acerta na solidão”, da psicanalista Ana Suy, sobre como o ato de se relacionar romanticamente é sobre lidar com nossa solidão e com a de mais alguém. Veja o livro aqui.
Escrevi um texto sobre o livro A Arte de Pedir, da Amanda Palmer, aplicado ao universo da produção de conteúdo. Está no meu site, que também mudou pra identidade nova. Tô pensando em compartilhar mais textos sobre o universo da produção de conteúdo por lá, o que vocês acham?
Semana que vem saio de Cuba e chego em Bogotá para passar um mês antes de retornar ao Brasil para o verão. Tô contando tudo no Instagram.
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Nós vemos na próxima!
Obrigada por essa edição! Ela trouxe alguns pontos muito sensíveis e incríveis, e foi demais saber mais sobre a festividade. Parabéns por esse trabalho lindo 😊