[Migraciones #28] Os últimos falantes do Boruca
A luta de indígenas da Costa Rica para manter vivas sua língua e tradições
A estrada que corre paralela ao pacífico e cruza todo o território da Costa Rica divide ao meio o pequeno povoado de Rey Curré como uma enorme cicatriz. Pela Rodovia Panamericana passam, todos os dias, dezenas de caminhões que transportam mercadorias entre as Américas, ônibus que levam turistas e moradores a cidades vizinhas e carros particulares que interrompem o silêncio na pacata cidadezinha de ruas de terra.
Os moradores dali são unânimes em dizer que o caminho de asfalto foi um golpe direto no coração do idioma que, por séculos, foi a forma primária de expressão do povo Boruca. "Pela estrada entra tudo que é estrangeiro, coisas que aqui não conhecíamos, sem nos perguntar se as queríamos ou não. Diria que a estrada foi 80% responsável pelo deterioro da língua Brunkajk", conta Melvin González, conhecido por ali como Camel.
A perda restante ele atribui ao sistema educativo, que há décadas falha em ensinar ao povo sua própria língua: "A educação se encarregou de nos matar. E não faz tanto tempo, foi de 50, 60 anos pra cá que o idioma sofreu seu maior declínio. Que você tenha duas horas de inglês e francês na escola e apenas meia hora do seu próprio idioma, é algo que não está certo".
Hoje, o número de falantes fluentes em Rey Curré pode ser contado nos dedos e se restringe aos anciãos do povoado. Melvin conta que mesmo ele encontra alguma dificuldade em se expressar em sua língua: "Meu pai e minha mãe me ensinaram o que sabiam, e aprendi muito ao participar da organização das festas e tradições daqui, mas não falo 100% como falavam meus avós. Muitas palavras já se perderam. Eu já não as sei e tampouco sabe a geração anterior".
O artista Saúl Morales, que vive a vinte minutos da comunidade de Rey Curré pela mesma estrada, compartilha da visão de que a educação é uma grande vilã na cultura indígena: "Há coisas que os jovens da minha idade nunca viram por causa do sistema educativo indígena. Não tivemos uma formação dentro da cosmovisão boruca. Estamos aprendendo, mas para isso é preciso uma mudança de consciência que não ocorre da noite para o dia".
Saúl é um dos poucos que ainda dominam de forma fluida o idioma e há 11 anos pesquisa as questões políticas que envolvem seu uso e a preservação, assim como a autonomia das populações indígenas. "Agora estou envolvido em um trabalho de modernizar a língua para o uso contemporâneo, pois há muitas palavras que precisamos hoje que não existiam no idioma", conta.
Ambos acreditam que o fortalecimento das tradições locais e da cosmovisão é importante para salvar o que ainda resta vivo do Brunkajk. Melvin é integrante do Comitê de Organização das Tradições da vila de Boruca, onde vive. O povoado é outro refúgio dessa população indígena e está a 5 km de Rey Curré. "Dentro do vocabulário boruca, temos palavras relativas às nossas tradições que não existem em espanhol. São conceitos que só podem ser expressos por nós", explica.
Quando o encontramos, ele visitava Rey Curré para ver de perto o Jogo dos Diablitos, ou Cagrúroj, uma das manifestações culturais mais populares dali. Durante três dias, borucas de todas as idades vestem máscaras tradicionais, confeccionadas para o evento, e participam de um jogo teatral cujo objetivo é matar o personagem fantasiado de touro, que simboliza o colonizador espanhol. Quando jogam, eles abandonam sua identidade para incorporar o espírito do indígena empoderado, que se levanta para derrotar o opressor e resiste a seus golpes.
Por muitos anos, tanto a festa quanto a arte da produção das máscaras artesanais estiveram a ponto de desaparecer, mas ganharam força nas últimas duas décadas, com o renascimento do interesse pela cultura local e do orgulho de ser boruca. "Hoje as crianças já te cumprimentam em boruca, sem que ninguém tenha que pedir. Nas festas de fim de ano, muita gente quer usar a língua, mas esbarram na dificuldade de não saber falar bem", explica Melvin, quando perguntado sobre os sinais de que a língua passa por um momento de renascimento.
Para ele, a particularidade cultural de agarrar conceitos estrangeiros e moldá-los de acordo com a sua cultura é um ponto a favor do fortalecimento da língua. "O idioma ainda existe, assim como nossas tradições. Esse ano, proibimos de chamar o touro em espanhol, só podemos nos referir a ele em nosso próprio idioma. E assim já é uma palavra a mais que a gente resgata", conta.
Durante a encenação, o touro chega a matar os guerreiros, que ressuscitam no último dia para dar o golpe final contra o invasor estrangeiro. Que essa seja a metáfora perfeita para a história da língua boruca.
Disclaimer: Esse post foi originalmente publicado em 2018 no 360meridianos, como parte do conteúdo que produzi para o Projeto Wakaya, uma investigação sobre as línguas originárias da América Latina e a luta dos nativos para mantê-las vivas. Leia outros textos aqui.
Enquanto isso, Youtube…
Publiquei o vídeo sobre Isfahan, a cidade mais bonita do Irã. Esse é o terceiro vídeo da minha viagem pelo país. Acredito que teremos mais uns três.
Eu ainda estou na luta para monetizar esse canal. Por isso, inscrições por lá são sempre bem-vindas!
Também falei sobre como eu aprendi espanhol em seis meses, estudando em uma das melhores universidades da América Latina, pagando muito menos do que eu pagaria em uma escola para intercambistas.
Recados
A News Grandes Viajantes do 360meridianos desse mês tem uma reportagem da Luíza e uma crônica do Rafa. Está imperdível!
Essa é minha última semana no Brasil. No dia 05 de maio, embarco para uma temporada na Colômbia, começando em Medellín e, depois, Santa Marta. Provavelmente passarei também por Bogotá. Se vocês tem dicas de algumas dessas cidades, vou adorar ouvir! Podem deixar nos comentários, por email ou me chamar lá no Instagram.
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