[Migraciones #19] Tradições intactas
Tusheti, parte 2: Mergulhando na cultura dos georgianos de Tusheti
Ao chegar em Dartlo, dei de cara com as portas e janelas fechadas. Deserta, a cidade parecia sonolenta, como se todos tivessem se retirado para uma siesta, apesar do sol escaldante da tarde. Os únicos seres vivos a darem as caras eram os monstruosos cães pastores do cáucaso - que, durante o descanso dos rebanhos, aproveitavam para latir para qualquer coisa que se movesse - e uma senhorinha de vestido florido sentada em uma varanda de madeira.
Ela estava alguns metros acima de nós, num ponto mais alto da encosta, numa casa na qual uma enorme placa branca com as palavras “Tushetian Beer” em letras vermelhas destoava do cenário medieval.
Comumente referida como uma “vila de contos de fada”, essa pequena comunidade encravada nas montanhas de Tusheti é considerada uma das mais bonita da Geórgia.
As 28 casas da vila (sim, eu contei) foram reconstruídas à maneira tradicional, com as paredes de ardósia empilhada, uma torre de vigia e amplas varandas de madeira. Por causa do êxodo que a região mais isolada do Cáucaso vem sofrendo em anos recentes, a maior parte delas já não serve mais como residência de verão para o povo Tush, mas como pequenos cafés e pousadas de administração familiar. Naquele momento, o café da senhorinha era o único aberto.
Gastando as únicas cinco palavras que sei em russo, consegui pedir uma “pivo”, mas não tinha nenhuma “georgian pivo” a não ser aquela que ela pegou direto do armário. Cedi, então, e acabei pegando outra “tushetian pivo”. Não é a minha coisa favorita do mundo, mas diante da sede e do calor, daria para o gasto.
Cerveja caseira de Tusheti.
Ela sorriu e, de dentro do seu armazém, abriu um caldeirão e, com uma concha, despejou o liquido amarronzado em dois copos descartáveis.
A cerveja de Tusheti é uma bebida turva, cor de água suja, gosto adocicado de café e mel e levemente gaseificada. Não tenho certeza se as que eu provei tinham álcool na composição, já que não senti nenhum. Conhecendo os georgianos, no entanto, é provável que o álcool esteja ali, camuflado entre especiarias, esperando alguém beber desprevenido para dar o bote.
Eu já havia experimentado a cerveja em Lower Omalo, a capitalzinha do vale, onde passara a noite anterior. Ao contrário de Dartlo, Lower Omalo parecia uma grande fazenda desprovida de qualquer charme. A maior parte das pessoas, no entanto, acaba se hospedando ali, uma vez que a vila conta com a melhor infraestrutura da região, com um mercadinho e sinal de internet, e é uma das primeiras a despontar na paisagem para quem vem da Estrada da Morte.
Dartlo fica a uma hora de carro de Omalo, em uma estrada tão ruim quanto e a que leva até Tusheti, e a mais ou menos cinco horas de trekking, para quem é esse tipo de gente. É, talvez, a vila mais cobiçada do circuito e foi uma das primeiras a receber investimento do Fundo Municipal de Desenvolvimento da Geórgia, criado para estimular o turismo na província de Kakheti. Por causa da maneira como o fluxo de visitantes se organiza na região, a cidade fica deserta durante o dia e só começa a dar sinais de vida no fim da tarde, quando as pessoas começam a chegar das longas caminhadas pelo vale.
Tradições intactas
Um dos motivos pelos quais Dartlo é tão famosa é que ela preserva, ainda intactas, parte das tradições do povo Tush. No alto de uma colina, um círculo de pedras que lembra um cemitério é um dos resquícios de uma cultura ancestral que se desenvolveu blindada entre as montanhas.
Ao contrário do que a primeira impressão nos leva a pensar, o círculo é, na verdade, um conjunto de bancos de pedras que eram utilizados pelos anciões para decidir sobre temas de interesse coletivo na vila, que eram desde delitos cometidos pelos moradores, até decisões mais sérias, como as relacionadas aos rebanhos e à colheita.
Quando se reuniam, levavam consigo um punhado de Khinkalis, os tradicionais dumplings da Geórgia, com recheio de carne e especiarias. Passavam as horas seguintes debatendo o assunto e compartindo a comida. Em um momento em que o lugar ainda não respondia a um Estado, as decisões tomadas no círculo de pedra tinham a validade de um júri.
A poucos metros dali, em um café, outro grupo de senhores georgianos compartiam khinkalis. Mas, longe de tomar decisões importantes, eles tiravam sarro da cara um do outro enquanto entornavam um galão de vinho laranja. “Esse vinho fui eu que fiz”, disse o mais alto deles. Assim que entramos, ele pediu duas taças à garota que atendia as mesas e veio nos oferecer um pouco da bebida. Na Geórgia, hospitalidade é coisa séria e as visitas sempre são recebidas com vinho.
Aceitamos de bom grado, embora já tivéssemos pedido um litro para acompanhar o jantar. “De onde vocês são?”, ele quis saber. Contou que já havia estado no Pará antes da pandemia, quando trabalhava em uma empresa de mineração de manganês. Quis falar mais sobre o Brasil, mas seus amigos protestaram para que ele voltasse à mesa. “Aquele ali, sentado na cabeceira, é Tamada, o mestre do jantar de hoje. É ele quem paga a conta, mas também quem dita as regras”.
Eu já havia escutado sobre os míticos banquetes georgianos, mas em Tbilisi ainda não tinha tido a oportunidade de ver um de perto. Mais que uma refeição, os jantares são eventos que podem durar horas. O mestre da mesa conduz os brindes, sempre extensos, e dita quando todos devem beber. Em pouco tempo, pratos de khinkali frito saíram da mesa do banquete e chegaram à nossa, e o vinho que pedimos seguia intocado, embora as taças fossem sempre reabastecidas.
Hospitalidade na Geórgia é coisa séria e talvez você seja recebido com comida e vários litros de vinho laranja caseiro, saia do bar trocando as pernas e enfrente uma ressaca horrorosa no dia seguinte.
Único registro que consegui fazer do episódio: no canto direito, o grupo do banquete. O de blusa laranja nos ofereceu vinho, o de preto, na cabeceira, era o mestre. Os galões vazios em cima da mesa levavam o vinho. Nas nossas, taças, vinho laranja que eles não paravam de oferecer e, no jarro, o vinho tinto que pedimos e não conseguimos beber.
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Vídeos da Semana
É muito fácil falar sobre os lugares que a gente gosta, mas e o contrário? Passei um mês em Budapeste esse verão e saí de lá com uma sensação meio meeh. Pensei em não produzir nenhum conteúdo a respeito, mas acabei escrevendo um texto para a News Grandes Viajantes (exclusiva para apoiadores do 360meridianos) e fiz um vídeo que tenta explicar os motivos.
Também transformei um trecho da primeira Migraciones em um vídeo-manifesto para ser trailer do canal.
Espero que gostem! Eu tenho gostado bastante de aprender um novo formato para me expressar na internet.
Favoritos da semana
Um vídeo de Steven Levitsky, autor do livro Por que as democracias morrem?, explicando porque o Bolsonaro precisa perder no primeiro turno.
Um teste bonitinho, rápido e muito interessante para você descobrir qual a causa social mais te inspira. A minha deu A Dignidade: condições de vida mínimas garantidas a toda a população. Em seguindo lugar, ficou o Conhecimento. Achei bem pertinente.
Um perfil emocionante que coleciona histórias de estranhos, ao estilo Humans of New York.
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Até a próxima,
Naty.