[Migraciones #18] A um passo do precipício
Tusheti, parte 1: Navegando a Estrada a Morte na Geórgia
Não tenho medo de altura, o que me apavora são os abismos. Me assombra sensação do nada se abrindo diante de mim, gigantesco, tragando meu corpo para dentro de si. Chego a sentir nítida a queda só de me aproximar de um precipício.
Conto isso para explicar porque eu gritei quando o carro voltou. Numa das curvas mais fechadas da subida, quando já estávamos a muitos metros do chão, numa parte da estrada de terra cheia de pedras pequenas e deslizantes, o Creta 4x4 arregou: os pneus perderam contato com o solo e giravam sem sair do lugar.
Voltamos a um ponto mais baixo da estrada para pegar embalo e tentamos outra vez. E mais uma. Na terceira, o carro perdeu completamente o atrito e deslizou junto com as pedrinhas para mais perto do precipício. Eu dei um grito de desespero, agarrada ao “puta-merda” do lado do passageiro. Jeff me olhou irritado. “Sem desespero”, ele disse, enquanto engatava outra vez a marcha à ré e guiava o carro de costas para um ponto ainda mais baixo da subida. E eu sem conseguir me libertar da sensação de que a morte estava perto demais. Não queria saber se a a distância do carro até o abismo era de cinco metros ou trinta centímetros.
A Estrada para Tusheti, oficialmente batizada de Pshaveli-Abano-Omalo road, é considerada uma das mais perigosas do mundo. A via recorta as encostas das montanhas por 77 quilômetros, numa inclinação de 45 graus até alcançar uma altitude de 3 mil metros a contar da sua base, num desfiladeiro conhecido como Chanchakhovani.
Dali, é preciso descer novamente alguns metros até chegar ao vale onde vivem as comunidades Tush, um subgrupo étnico georgiano considerado um dos mais isolados das montanhas do Cáucaso. Devido às condições rústicas sob as quais a estrada é mantida, com pouquíssima manutenção desde a década de 1980, quando foi construída, ela só é transitável entre o fim de maio e o fim de outubro, momento em que as primeiras neves começam a cair.
Todos os anos, notícias de acidentes fatais na estrada ganham os noticiários georgianos. Mas outros tantos ocorrem sem estardalhaço, dizem por ali. Em 2019, sete turistas morreram e três ficaram feridos quando uma van contratada para fazer o trajeto rolou montanha abaixo. Memoriais em homanagem a essas e outras vítimas pipocam de tempos em tempos, um lembrete mórbido do perigo que eu tentava, com todas as forças, fingir não ver.
É preciso, no entanto, fazer um adendo: por mais assustadora que seja a estrada, ela não é, em si, o maior perigo. São os motoristas de Tusheti que, para acalmar os nervos antes de encarar tantas curvas (às vezes várias vezes no dia) preferem fazer o trajeto embalados na chacha, destilado típico do país que chega a um teor alcóolico de 65%.
Eu soube de tudo isso na semana anterior à viagem, quando, mergulhada no conflito interno entre a vontade de explorar e o medo da morte, me afundei nas letras pequenas de sites obscuros em busca de mais material para alimentar minha ansiedade.
Na quarta-feira, 31 de agosto, venceu a curiosidade. Retiramos o 4x4 mais barato do catálogo numa locadora em Tbilisi e, duas horas e meia mais tarde, deixamos o vilarejo de Kvemo Alvani, na província de Kakheti, para encarar quatro horas e meia de curvas sinuosas, poeira e paisagens deslumbrantes. Eu, claro, só avisei minha mãe quando cheguei em casa.
Algo interessante de se notar é que, querendo ou não, você se acostuma a encarar o abismo. E então ele te encara de volta. Os vales e desfiladeiros que se desdobram a cada guinada no carro são a recompensa pelo perigo. E, lá do ponto mais alto, o prêmio é olhar para baixo e ver os traços que marcam o caminho que você percorreu encravados na montanha.
As primeiras povoações só começaram a aparecer quando entramos no vale, já no fim da viagem. As vilas ficam encravadas nas montanhas, mas longe dos desfiladeiros, em locais onde o rio Alazani corre a poucos de onde você pisa.
Ao parar o carro em uma campina em Omalo, a principal vila de Tusheti, quis fazer como papa e beijar o chão: só dá valor à planície quem já gritou à beira do precipício.
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Dicas e links
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Até a próxima,
Naty.
chegamos agora por aqui e já estamos amando! estamos acompanhando a viagem pelo insta (seu e do Jeff) e completamente impactos com as aventuras que estão vivendo. acho que não teria coragem pra essa estrada, tenho pânico de precipícios e pedras hahaha mas é incrível acompanhar a perspectiva de vocês. assistimos ao vlog e já vamos nos inscrever no canal, tá demais demais! continua! beju :)
"Algo interessante de se notar é que, querendo ou não, você se acostuma a encarar o abismo. E então ele te encara de volta."
"só dá valor à planície quem já gritou à beira do precipício"
sensacional! muito além da descrição da paisagem! obrigado pela experiência.